quarta-feira, setembro 22, 2004

Da música e da dança

Porque a malta anda sempre no balho, e de qualquer maneira o saber não ocupa lugar, deleitem-se com este artigo, escrito por Jorge Dias (1907-1973), acerca da evolução das formas e funções da dança e da música no portugal do séc.XX, até á década de 70, em que o artigo foi escrito. Visão transversal de um homem que dedicou a vida á etnografia portuguesa.

"Da música e da dança, como formas de expressão espontâneas populares, aos ranchos folclóricos" - Jorge Dias (1970)


Esta comunicação não é a obra de um especialista do folclore musical, mas o depoimento de um etnólogo, que nasceu nos primeiros anos deste século e teve a dita de percorrer todo o País, conhecendo a vida do campo desde muito cedo, observando muitas das transformações que se foram operando no decorrer dos últimos decénios.

Até 1922, o Entre Douro e Minho vivia numa festa permanente. Embora a alimentação da maioria fosse pobre em proteínas e noutros princípios energéticos, como consideravam isso natural e ignoravam que noutras regiões podia haver uma alimentação mais rica, não conheciam sentimentos de frustração e brotava do povo rural uma alegria franca e irreprimível.

Aos domingos e dias de festa dançava-se nos largos e terreiros, por toda a parte, e durante o trabalho o canto animava constantemente as lides do campo.

No Baixo Minho, nos concelhos de Braga e Guimaráes, era rara a casa rural, onde não houvesse uma viola ou um cavaquinho e, por vezes, uma harmónica, a que mais tarde vieram a chamar concertina.2

Espontaneamente, bastava que um começasse a tocar, para que rapidamente viessem vizinhos de quintas próximas e formava-se uma festada. As raparigas apareciam com os seus trajas garridos epassavam a tarde de domingo a dançar e a cantar ao som dos instrumentos.

Em muitos trabalhos de campo colectivos3, quando rogavam os vizinhos e os amigos para virem ajudar a uma sacha, ou malha de centeio, ou às vindimas, era sabido que tudo terminava numa festa.

Se nas quintas grandes estavam os senhorios (os fidalgos) que davam vinho à discrição, então os caseiros rogavam os melhores tocadores e cantadeiras da vizinhança.

As raparigas, além das festas, onde cantavam em grupo com os rapazes ou cantavam individualmente ao desafio, também se juntavam com frequência para certos trabalhos femininos, como as espadeladas e as estopadas, e então ouviam-se os belos corais minhotos a duas e três vozes.

Nas esfolhadas também se juntava muita gente. Às vezes, lá vinham os instrumentos e dançava-se um pouco pela noite fora, sobretudo nas noites de luar.

Além dos domingos e dias de festa locais, havia as grandes romarias minhotas. Das mais célebres, lembramos, um pouco ao acaso, a Senhora da Agonia em Viana do Castelo, a das Cruzes em Barcelos, o São Bento da Porta Aberta, lá para os lados do Gerês, o S. Gualter em Guimarães, a Peregrinação à Penha (Guimarães), Nossa Senhora da Graça em Celorico de Basto, S. Lourenço da Montaria na Serra da Arga e muitíssimas outras.

A todas elas acorriam numerosos romeiros, vindos, por vezes, de terras distantes e que calcorreavam estradas e caminhos, a cantar e a tocar, dançando mesmo grandes pedaços dos trajectos.

As mulheres e raparigas levavam os merendeiros à cabeça, o vinho ia, por vezes, em pequenos barris com asa de ferro, em cabaças, ou em grandes chifres, que os homens transportavam a tiracolo. Nas mãos dos homens não faltavam nunca os varapaus de lodo, para qualquer refrega que surgisse.

As mulheres usavam os seus trajos garridos, muito variados, conforme as regiões do Minho de onde provinham. Os homens, de chapéu braguês, de aba larga, colete de costas de cor, em geral vermelho, jaqueta de alamares ao ombro, camisa de linho bordado, com o nome do dono bordado a vermelho, em certas regiões a azul. Na cinta, uma faixa preta de várias voltas segurava as calças.

Seria sem sentido tentar dar uma lista das romarias do Entre Douro e Minho, tantas elas eram, incluindo os locais que só atraíam os das terras próximas. Mas não devemos esquecer que descendo de Braga e Guimarães para Sudeste, na região de Amarante, a viola de corações animava as festas, sobretudo as de S. Gonçalo, que se difundiu para o Brasil, onde se mantém vivaz. Continuando para o Douro ia-se dar à famosa região de Barqueiros, célebre pela sua chula bárbara, violenta e de esfuziante alegria.

O próprio Douro Litoral, apesar da influência da cidade do Porto, não escapava à exuberância que trasbordava do Minho. As romarias eram cheias de colorido e de alegria. O Senhor da Pedra (perto de Miramar) era visitado por numerosíssimas rusgas vindas das aldeias próximas. Nesse tempo, Ramalde e Gondomar eram inteiramente rurais, e dentro da cidade actual havia ainda muitas quintas. Mas a própria classe popular citadina participava nas romarias dos arredores formando também pequenas rusgas ou grupos festivos, com pequenos bombos, pandeiretas, ferrinhos, por vezes violas e cavaquinhos e reques-reques.

Logo ao romper do dia, começavam a sair da cidade, indo numerosíssimos a pé, outros em charabã, ao som dos bombos e dos demais instrumentos. A ponte de D. Maria chegava a abanar de maneira impressionante com a massa de romeiros que a atravessava continuamente.

As romarias do Senhor de Matosinhos e da Senhora da Hora eram igualmente frequentadas por gentes dos arredores e da cidade do Porto. E tudo cantava, formando-se nos terreiros grupos que dançavam.

Em Trás-os-Montes, o povoamento concentrado, as pequenas povoações distantes umas das outras, apresentavam uma feição diferente.

Aos domingos e dias de festa também se dançava a «jota» ao som da gaita-de-foles e dos tambores, sobretudo nos planaltos de Este. Os adufes e os cantos eram nalgumas regiões dominantes.

No distrito de Bragança havia muitas canções de trabalho, sobretudo no tempo das malhadas, e nas segadas do centeio. Os romances tradicionais eram ainda cantados, a solo ou em grupos.

Pelo Natal cantavam as loas ao Deus Menino, por vezes acompanhados pela gaita. Era frequente cantarem à volta da grande fogueira do Natal, acesa em frente do adro da igreja, depois da Missa do Galo.

No distrito de Bragança havia uma festa ritual, no ciclo do Inverno, em que usavam máscaras, as chamadas festas dos rapazes4, que em certas fases eram, por vezes, acompanhadas de música.

Os célebres fiandeiros, em que tocavam o adufe (pandeiro) e cantavam, sobretudo as mulheres, eram festas tocantes pela alegria simples e pela pureza das canções.

Era costume em Trás-os-Montes anunciar as festas por uma ronda, que, ao romper do dia, passava ao longo das ruas, com instrumentos locais ou com uma pequena orquestra contratada — as alvoradas.

Pelo S. João e outros Santos do ciclo do verão eram frequentes as festas, nas próprias povoações, a que podiam acorrer vizinhos de aldeias próximas e ao som do tambor e da gaita-de-foles tudo dançava5.

As romarias eram mais raras e os romeiros, que não eram de aldeias vizinhas, vinham montados em cavalos e burros. Algumas festas, como Nossa Senhora do Naso, em Terras de Miranda, S. Pedra da Silva e Argozelo eram muito concorridas. Além dos pauliteiros que apareciam logo de manhã nas rondas a pedir esmola para o Santo, dançava-se nos grandes terreiros durante o dia e de noite à luz das fogueiras. Não eram festas movimentadas, nem trasbordantes de alegria como as do Minho, mas havia nelas uma intensidade lúdica, de uma força interior impressionante.

Na região do Alto Douro, a época animada, era a das vindimas. Então eram necessários muitos braços, e formavam-se rogas nos planaltos e serras de Trás-os-Montes e da Beira, que desciam ao vale do Douro. Estes grupos de gente nova vinham menos pela paga do que pela brincadeira e pelas uvas que comiam. Muitos eram de regiões, onde não havia uvas, nem mesmo fruta de qualquer espécie, como os das aldeias altas da serra de Montemuro. As rogas iam-se formando conforme combinações feitas com antecipação e já levavam, em geral, o seu destino. Pelo caminho também era frequente cantarem e às vezes transportavam o seu tambor e, em certas regiões ferrinhos e concertina.

Os de Barqueiros, com a sua orquestra estrídula, com rabecas de braço curto, animavam as vindimas das grandes quintas de perto da Régua.

Para o Sul do Douro, nas regiões serranas, cantava-se e dançava-se menos, mas em Pias, perto de Porto Antigo, havia lindos corais de mulheres que se ouviam às tardes nas margens do rio Bestança. A Senhora da Lapa era visitada por muitos romeiros, mas não havia grande animação festiva. Só em Lamego, na Nossa Senhora dos Remédios, entre os numerosos grupos que acorriam de diferentes regiões, havia alguns que cantavam e dançavam, mas nada que se comparasse com as romarias para o norte do Douro.

Nesta área eram frequentes as «bandas», como as da Gralheira e Maqueija, na Serra de Montemuro, que iam a cavalo, tocar às festas para que eram convidados.

Na Beira Litoral ouvia-se a gaita-de-foles, acompanhada pelos grandes bombos dos Zés-Pereiras, a animar as solenidades. Até na cidade de Coimbra era frequente eles colaborarem em algumas festas de estudantes. A viola toeira também se usava para acompanhar o canto.

A grande região musical de entre Douro e Tejo era a Beira Baixa, com as suas célebres romarias, como a Senhora dos Altos Céus, na Lousa, a Senhora do Almurtão, a Senhora da Póvoa e as chamadas festas do Castelo em Monsanto. Aí era o mundo maravilhoso dos coros e dos cantos acompanhados, ou não, a adufe. Era música lindíssima de tipo cerimonial, de grande pureza e de raiz mais antiga. Embora se mantivesse, aqui e ali, a viola que acompanhava o canto profano.

No Ribatejo imperava o fandango, vivo, colorido e movimentado.

O Alentejo tinha épocas do ano, em que desciam os «ratinhos» da Beira e subiam os algarvios para trabalharem nas fainas dos campos, e formavam grupos em que reinava a animação desses jovens que vinham ganhar uns escudos às terras do pão. Nos períodos de descanso, após as refeições servidas no campo, era frequente cantaram e dançarem, enquanto os jovens alentejanos dançavam bailes de roda.

No Este alentejano, como por exemplo, em Barrancos, tocava o tamborileiro — nos peditórios para a festa da vila. Havia também grandes romarias, como a Senhora de Guadalupe, perto de Serpa, onde se juntava muita gente. Mas nada tinham de comum com as romarias do Norte, onde o mais importante era a música e a dança. Porém, no campo da música, os corais masculinos alentejanos, eram uma das expressões musicais mais belas de todo o País. Estes corais pode dizer-se que estavam incluídos numa área que se pode grosseiramente designar por um rectângulo imperfeito, incluído entre os concelhos de Cuba, Moura, Mértola e Castro Verde.

Nas noites de luar, no Verão, os homens em grupos, os braços sobre os ombros uns dos outros, formando um círculo, outras vezes em linha, e a caminhar lentamente pelos amplos caminhos ou estradas, cantavam, e as suas vozes enchiam a noite de uma magia, que só pode compreender quem teve a dita de os ouvir. Ao fim de um dia de trabalho duro na ceifa, aqueles homens libertavam-se do peso da vida pelo canto.

A par deste canto de tipo cerimonial, também existia a viola campaniça no Alentejo, para acompanhar o canto individual.

No Algarve imperava o corridinho, vivo e animado. Também se usava o cavaquinho6.

Com o progresso das técnicas foi-se operando uma grande transformação nestas formas de expressão lúdica, na música vocal, ou instrumental e na dança.

Até então, cada área cultural, embora não estivesse inteiramente segregada do resto do País, vivia num relativo isolamento. Os transportes não tradicionais, quando existiam, eram caros para economias de subsistência. Os que emigravam ou procuravam trabalho nas cidades, como as então chamadas «criadas de servir», embora fossem agentes de transformação, não produziam alterações profundas ou bruscas. Até uma certa época, o fado de Lisboa ou o fado balada de Coimbra, não chegavam praticamente às áreas rurais. Eram puros fenómenos citadinos. Mas aos poucos, com a facilidade dos transportes, a maior mobilidade das pessoas, e, sobretudo, a reprodução da música por meio de máquinas foi exercendo uma acção difusora enorme, que começa a alterar os padrões locais.

O gramofone, cuja patente Edison registou em 1878 sob o nome de «fonógrafo», foi-se aperfeiçoando muito no primeiro quartel do séc. XX7. Por volta de 1925, eram frequentes os gramofones de corda, transportáveis, que as pessoas abastadas levavam para as casas de campo, mas a sua acção era muito limitada. Porém, quando se começaram a utilizar nas festas pequenos motores geradores de electricidade, com gira discos e altifalantes, os resultados foram fulminantes. Foi um autêntico golpe de morte no folclore musical de certas regiões. Por volta de 1942, assisti a uma romaria minhota, julgo que em Ponte de Lima, onde as festadas que chegavam das aldeias próximas a tocar e a cantar, eram surpreendidas pelos sons estrídulos do altifalante que lhes abafava completamente os instrumentos e as vozes, e os obrigava a desistir. Ao som dessas músicas variadas e desconhecidas também era impossível dançar.

O deslumbramento pela novidade e o espírito de concorrência, fazia com que os organizadores das festas, tratassem sempre de contratar uma dessas máquinas, mais de fazer barulho do que música, e que já estavam montadas em furgonetas. A difusão destas máquinas foi tão rápida que até em Rio de Onor, na festa de S. João em 1945, levaram uma em cima de um carro de bois. Só depois compreenderam que não se tinham divertido como de costume e, nos anos seguintes, desistiram. Porém a noção de prestígio e modernidade acabam sempre por se impor. Aos poucos, em certos lugares, ao som dos discos, começaram a imitar danças citadinas. Só nas regiões mais afastadas dos centros foram sobrevivendo as tradições musicais.

Como o comportamento da gente nova se fosse transformando com o tempo, alguns bispos começaram a querer proibir que as festas profanas estivessem associadas às festas religiosas. A tradição de ir à festa religiosa ou à romaria estava, desde há séculos, associada a uma noção de festividade que também tinha os seus aspectos lúdicos; e isso fez com que as festas populares tomassem também uma nova feição. Mais tarde começou a própria guarda republicana a exigir licenças para fazer festas ou bailes, certamente para melhor poderem controlar desmandos, mas foi mais um elemento que ajudou à extinção das festas populares, onde se conservava certo tipo de folclore musical.

A Emissora Nacional de Radiodifusão, já tinha começado a partir de 1933, a difundir programas musicais que mais tarde incluíam também fados e música folclórica8. A música popular, que até então estava relacionada com uma certa região, foi-se começando a apresentar como uma ementa variada, onde se oferecia de tudo. Porém a sua acção era limitada, porque eram muitas as áreas, onde não havia electricidade e o rádio não entrava a não ser em poucas casas abastadas, que usavam pilhas ou geradores eléctricos. A partir de Janeiro de 1950 foram lançados no mercado os primeiros transístores de aplicação industrial que de início não deram resultado, mas que se vieram rapidamente a aperfeiçoar mediante novos processos9. Aparelhos transportáveis e baratos contribuíram poderosamente para que os cantares regionais fossem profundamente afectados e baralhados. Mas para os folcloristas ainda restavam as pessoas idosas, anteriores às inovações e fiéis depositários de uma tradição que se tornava arqueológica — se é permitida a expressão neste caso.

Em 7 de Março de 1957 organiza-se a Rádio Televisão Portuguesa. Este facto coincidiu com maior abundância e distribuição de electricidade por várias regiões do País. Muitos viram na televisão uma fonte de lucro e começaram a abrir-se cafés pelas vilas e aldeias maiores, onde a televisão servia de chamariz, roubando o público das tabernas.

A televisão oferece também programas de folclore musical. Em todas as regiões do País, ouvem-se as canções dos outros, e vê-se como eles dançam.

Ao mesmo tempo que, a pouco e pouco, o que era vivo e vinha do passado começa a ficar ameaçado, nasce em muitos a saudade por essas formas de expressão musical, sobretudo nos que, esclarecidos pelo que se tinha passado em países tecnologicamente mais adiantados, pressentiam que entre nós iria acontecer o mesmo. Começam então vários a clamar que era necessário salvar o folclore nacional. A Emissora Nacional fez uma campanha de recolha em fita gravada, dirigida por Armando Leça. Outros procuraram registá-la por escrito, — há que falar em Lopes Graça e Michel Giacometti — fizeram-se alguns cancioneiros10. O Departamento de Música da Fundação Gulbenkian, criou uma secção de Etno-Musicologia e tentou enviar musicólogos para o campo fazer estudos e gravações. Lutou com falta de técnicos preparados que dispusessem de tempo11. Encarregou também o Dr. Ernesto Veiga de Oliveira de fazer uma recolha de instrumentos musicais populares e o seu estudo, o que ele fez ajudado por Benjamim Enes Pereira, escrevendo em seguida um livro magnífico, em que ao conhecimento directo dos instrumentos populares portugueses se junta uma vastíssima erudição12.

Muito antes destes factos apontados, as mesmas razões que levaram uns a tentar salvar a música, levaram outros a tentar preservar a música e a dança, criando grupos de jovens que se conservassem fiéis à tradição da sua terra. Parece que o primeiro foi o estudioso Abel Viana que, em 1933, organizou o rancho de Carreço13. A esta tentativa séria e bem intencionada seguiram-se outras, nem sempre animadas do mesmo espírito. Surgiram grupos obedecendo aos mais variados critérios. Muitas vezes, um senhor importante da terra, movido por zelo bairrista ou por autêntico apreço pelos valores regionais, organizava o seu rancho. Alguns, onde já nada restava do passado, inventaram eles próprios o seu repertório, desde o trajo fantasioso, até à música e à dança.

Começaram a fazer-se cortejos folclóricos, concursos, exibições nacionais e internacionais e, aos poucos, até os melhores foram perdendo o sentido da verdade e da pureza. Às vezes, a necessidade de encher um programa, obrigava um grupo que dançava muito bem determinada dança, a ter de inventar ou adoptar outras, pois o público quer variedade. Por sua vez, os empresários têm as suas exigências, de acordo com o que eles pensam ser o gosto do público.

Os concursos, com prémios, obrigavam aqueles que perdiam a tentar imitar os que tinham ganho, acelerando os ritmos ou fazendo passos e piruetas de mau gosto.

No trajo aparecem coisas horríveis e ridículas, como usar canastras pequenas presas à rodilha na cabeça. Por vezes as raparigas deitam vermelhão nos lábios e nas faces e entram no estrado com a mão na cinta, em atitude semelhante à das antigas revistas baratas, cantando uma marcha. É certo que, no meio disto tudo, há quem se esforce por salvar o mais possível, mas ninguém pode lutar contra as condições sociais criadas pelas técnicas e pela industrialização.

A emigração veio agravar o estado de coisas, quer dos ranchos, quer do que ainda existia, por si próprio. Um pequeno grupo coral familiar de Barcelos, que em 1964 causava sensação pelo domínio e jogo de vozes, emigrou para França e lá se foi.

No Alentejo, o êxodo para Lisboa e arredores faz com que os grupos se desarticulem. Homens dotados de vozes próprias para certos solos, indispensáveis ao conjunto coral, abandonam a terra, e o grupo não encontra quem o substitua e perde-se a tradição. Dizem que é hoje mais fácil ouvir um grupo coral alentejano formado pelos trabalhadores que vivem na área de Algés, do que no Alentejo. Certamente é exagero! O certo é que o público se contenta em ir à «Cozinha Alentejan a» ou ao restaurante «Folclore», para se deleitar com aquilo a que há quem chame folclore. Não creio que seja possível manter vivo o que era uma manifestação de vida funcional que vai sendo substituída por outra, cujas funções são diferentes. Como pode haver cantares de malhadores quando a malha se faz com a debulhadora mecânica; como pode haver cantos de ceifeiros com as ceifeiras mecânicas.

A avidez do lucro, consequência da industrialização, também contribui para acabar com inúmeras tradições. Até há cerca de 2 ou 3 anos14, o elemento principal das celebrações do S. João, no Porto, era o alho-porro: naquela noite, a população inteira da cidade empunhava o alho-porro, com que esfregava a cara de quem lhe apetecia, sem que isso suscitasse qualquer reparo. Por uma hábil manobra comercial dos fabricantes de plásticos, que exploram a inconsciência das massas, esse inofensivo alho-porro foi destronado por uns horríveis e agressivos marteletes de plástico, sem qualquer graça, que se aproveitam da licença tradicional daquela celebração — para acabarem com o que ela tinha de essencial.

Muitos cientistas usam hoje a palavra folklorismus15 e fakelore16, para exprimir o subproduto adulterado daquilo que foi uma expressão pura dos povos, quando viviam a sua vida tradicional de isolamento e criação própria.

O progresso técnico tem de prosseguir a sua marcha, porque ele é uma das características típicas da adaptação activa do homem à natureza. Mas é evidente que será errado pensar que progredir tecnicamente significa sacrificar tudo aquilo que pode dar beleza à vida e alegria aos homens. Simplesmente não sabemos ainda, nesta grande mutação da história do homem, quais os caminhos novos que se hão-de abrir perante os vindouros.

Há pelo menos em nossos dias curiosas tentativas de procurar novas orientações. Na aldeia de Pias, uma das maiores do Alentejo, a Missa do Galo foi acompanhada a música «pop», no Natal de 1969. Dizia o jornal que «depois de, durante várias horas, terem ardido quatro toneladas de lenha numa imensa fogueira17, no largo da igreja, iniciou-se, à meia-noite, a celebração da tradicional «missa do galo». De ambos os lados do altar, postaram-se filas de jovens, que cantaram a missa em ritmo moderno, acompanhados pelo conjunto «Apolo-5», com as suas violas e órgão electrónico.

«A experiência concebida pelo pároco local, padre Gaudêncio da Silva Fernandes, obtivera prévia autorização do arcebispo-bispo da diocese.

«Parte da música executada era da autoria do próprio pastor da freguesia, tendo sido recebida com o maior entusiasmo pela multidão de fiéis — sobretudo pelos mais jovens — que afluíram à igreja em número desusado.

«Terminado o ofício, realizou-se a cerimónia da adoração do Menino, também ao som da música — desta vez de canções pelo rancho coral Os Camponeses de Pias»18.

O mesmo jornal, em princípios de 1970, traz a seguinte notícia «Nova forma de participação em cerimónias litúrgicas. Guitarras Eléctricas, Música Moderna e Ardor Juvenil na Missa Dominical de Paço d'Arcos»19.

Como se vê, volta a estabelecer-se uma aliança entre as festas religiosas e os elementos musicais festivos e populares; mas um popular completamente diferente da antiga tradição!



1 Comunicação feita no XXIX Congresso Luso-Espanhol (Lisboa, 31 de Março a 4 de Abril de 1970). Separata do Tomo III da actas. Digitalizado e revisto por Domingos Morais em Agosto de 1999.


2 Sobre instrumentos musicais ver Ernesto Veiga de Oliveira, Instrumentos Musicais Populares Portugueses (Fundação Calouste Gulbenkian), Lisboa, 1966


3 Ver Ernesto Veiga de Oliveira, Trabalhos Colectivos Gratuitos e Reciprocos em Portugal e no Brasil, Revista de Antropologia, São Paulo, vol. 3 ( I ), Junho de 1955


4 Francisco Manuel Alves (Abade de Baçal), Memórias Arqueologico-Históricas do Distrito de Bragança, Tomo IX, Porto, 1934, p. 289-296.


5 Ver Jorge Dias, Rio de Onor, Porto, 1953, p.349-357.


6 Jorge Dias, O Cavaquinho, estudo de Difusão de um Instrumento Musical Popular, Separata da Revista de Etnografia, nº 16, Porto, 1967.


7 Enciclopédia Luso-Brasileira.


8 Enciclopedia Luso-Brasileira.


9 Enciclopedia Luso-Brasileira.


10 Ver Benjamim Enes Pereira, Bibliografia Analitica da Etnografia Portuguesa, Lisboa, 1965.


11 Virgílio Pereira, que já tinha feito várias recolhas importantes de música escrita, subsidiado pela Junta do Douro Litoral, fez abundantes gravações na Beira a expensas da Fundação Gulbenkian. Ainda hoje continuam outros a fazer essa recolha com a preocupação de salvar o que ainda existe nalgumas regiões do País.


12 Ernesto Veiga de Oliveira. cit. nota 2.


13 Informação de Benjamim Enes Pereira.


14 1967/1968


15 0 Zeitschrift für Volkskunde (W. Kohlhammer Verlag), Stuttgart 1969, I, dedicou um número ao Folklorismus in Europa, ver Jorge Dias, Folklorismus in Portugal, p. 47-55.


16 Na publicação citada na nota 14, Richard M. Dorson, usa a expressão Fakelore (p. 56-64) que em inglês significa o mesmo que Folklorismus em alemão.


17 Isto era uma tradição do leste transmontano e beirão agora aqui introduzida.


18 Música «Pop» numa «Missa do Galo» Alentejana. Diário de Notícias, 27-XII-1969.


19 Diário de Noticias.


artigo retirado de
alfarrabio.um.geira.pt/cancioneiro/ etnografia/Jorge_Dias.doc.html

quarta-feira, setembro 01, 2004

O lado obscuro de José Cid

Através do 12 de Setembro, descobri esta pérola de José Cid:



"10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte" - José Cid, 1978"This time, Cid went for a concept more to my liking: sci-fi. The album deals with the destruction of the Earth from the usual (wars, pollution). A Man and a Woman escapes in a spaceship only to return to Earth some 10,000 years later to find the planet returned to her former beauty. If anything, this album sounds something like a Portuguese version of Eloy."

José Cid - O Caos.mp3

Há momentos que lembra Uxu na sua faceta Metaleira; não é à toa que classificaram isto na categoria de "Rock Sinfónico Progressivo"...